Data importante em muitos lares brasileiros, o Dia das Mães de 2024 é um borrão na memória de diversas famílias gaúchas. Para boa parte das matriarcas, não havia sequer motivos para comemorar, em meio à maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul, que se desenrolava justamente naquele período.
Alicerces do lar, muitas mães enfrentaram algumas das maiores dificuldades de suas vidas — e se desdobraram para garantir o melhor não apenas aos próprios filhos, mas também às comunidades em que estão inseridas. Atuaram de diversas formas: doaram tempo, trabalho, carinho e cuidado. Foram resilientes – por si e pelos outros.
Neste Dia das Mães – o primeiro a ser celebrado após a catástrofe –, a convite de Donna, três mulheres compartilham reflexões sobre como a tragédia afetou diversos aspectos da maternidade.
"Ser forte por eles, por meu filho e marido se tornou uma missão diária"
A expectativa é de um Dia das Mães tranquilo, após as consternações vividas por Cíntia Wiebbelling Muller, 51 anos, em 2024. Além de ver a escola onde trabalhou por 11 anos como diretora ser fortemente atingida pela enchente, ela foi obrigada a deixar sua casa em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari – um dos municípios mais afetados pela tragédia.
Mesmo perdendo sua própria base, Cíntia teve de ser forte para ser o alicerce do filho e da comunidade escolar.
— Precisei encontrar dentro de mim uma força que nem sabia que existia. Não podia demonstrar fraqueza, pois os alunos buscavam respostas, consolo e esperança. Mesmo com o coração apertado, assumi o papel de porto seguro, tentando mostrar que, para além do prédio que perdemos, o conhecimento, o carinho e os laços que construímos permaneceriam firmes — recorda.
A EMEF Antonio Domingos Ciceri Filho já havia perdido tudo na enchente de setembro de 2023. Em maio do ano seguinte, os danos estruturais causados pela água impediram o retorno das atividades.
— Tive de mostrar, muitas vezes, que dias melhores viriam. Foi difícil, porque além dos alunos, os professores se sentiram perdidos. Ser forte por eles, por meu filho e marido se tornou uma missão diária — acrescenta a diretora.
Além de conseguir doações, a diretora também auxiliou os pais a deixarem suas casas. Desesperados e preocupados, muitos foram para abrigos, por meses – e, para eles, a escola era o melhor local para os filhos naquele momento.
Mesmo com o coração apertado, assumi o papel de porto seguro, tentando mostrar que, para além do prédio que perdemos, o conhecimento e os laços que construímos permaneceriam firmes
CÍNTIA WIEBBELLING MULLER
Enquanto lidava com os estragos, ajudava na limpeza de escolas e amparava a comunidade como uma mãe, Cíntia teve de abandonar sua casa devido a rachaduras e ao risco de desabamento do morro. No dia 5 de maio, saiu e não retornou mais.
— Foi uma loucura. A gente começou a tirar tudo, eu saí às pressas. Fui morar em um sobrado que a minha irmã tinha em Lajeado. Mesmo sendo bom, não é o lugar da gente — relembra, emocionada.
Aos poucos, a angústia e a dor foram amenizando, conforme Cíntia. A saudade, entretanto, ainda está latente.
— Tudo que a gente fez foi com muito amor, carinho e esforço. Então, quando as pessoas dizem: “Ah, Cíntia, é só um bem material”. É um bem material, mas é o nosso coração. É que nem a escola. Não é um prédio. Era o nosso segundo lar — declara.

Luta diária
Em novembro, uma nova escola, construída por voluntários e empresas de Santa Catarina em outro bairro, ou a receber os alunos da instituição e de outra EMEF, que ficava no o de Estrela – localidade devastada pela água.
Com a situação se acalmando, as questões emocionais têm ressurgido com mais força. É uma mistura: tristeza por perder a casa e a escola, alegria por ter conseguido um espaço mais seguro para morar e trabalhar. Recentemente, Cíntia ou a tomar medicação para ajudá-la a seguir em frente. O marido também é um pilar essencial de e.
O maior desafio como mãe foi justamente ser forte para ser o alicerce e ajudar o filho. Foram momentos de medo e incerteza. Os pais também conseguiram incentivá-lo a procurar um psicólogo.
— Procurei sempre manter a calma, mesmo quando o nosso redor parecia desmoronar. Todo dia era uma luta diária. Mesmo diante de tantas dificuldades, procurei sempre ser força e consolo, mostrando que ele poderia se sentir seguro, que os bens materiais não são tudo na vida, e sim o valor do amor, da proteção e da resiliência que juntos construímos. Não foi fácil, mas estamos nos recuperando — conta Cíntia.
Muitas vezes, o filho relatou sentir saudade de casa, e a mãe teve de ser firme para não chorar. Assim é também na escola: os alunos ainda sentem saudade, e a diretora busca ser forte e ressaltar os pontos positivos do novo espaço.
Para o filho Luan, 19 anos, os pais têm desempenhado um papel fundamental para a superação. Em meio à tragédia, o jovem sentiu ainda mais a importância dos laços, destacando a importância do esforço da sua mãe:
— Foi um trabalho bem grande. Vi muita inspiração nela. Ela não se deixa perder por causa disso e segue em frente. Eu a amo muito. Ela e o pai. Não sou muito de falar isso.
A família tomou a decisão de não retornar para a casa – a região segue habitada, mas sob estudo geológico. Um novo lar está sendo construído, em um local mais alto, longe da água e de perigos de desabamento, para onde devem se mudar em breve.
Aproveitar mais a vida e os momentos em família, não colocar o trabalho à frente de tudo, deixar um pouco os bens materiais de lado – essas são algumas das reflexões que hoje Cíntia leva do que aconteceu.
O amor pelas pessoas, pela família e pela escola forneceram a força necessária para continuar e dar e a quem necessita, avalia:
— Me perguntava muito em silêncio, por que isso? Tem de ter um porquê. Sei que fui bem forte. Acho que é aquela coisa de mãe, de professora, de conseguir ar todas essas dificuldades.
"Tudo que vou fazer é neles que tenho que pensar"
Com a água na cintura, Miliana Oliveira, 30 anos, deixou sua casa nos fundos do Beco do Beto, em Eldorado do Sul, quando percebeu que não havia outra alternativa. A manicure não imaginava que a água – que nunca havia chegado a seu endereço – invadiria agora a residência, mas o rio subia rapidamente, e já não havia eletricidade.
Em um dos braços, carregava a filha nascida há três dias. No outro, o filho. Sem saber exatamente como agir, a mãe solo de quatro crianças partiu rumo a um abrigo, em meio à escuridão e à chuva da noite de 3 de maio.
Pularam de abrigo em abrigo quatro vezes. A chegada de um bebê, que costuma ser um período recomendado de isolamento, foi tempestuosa. Sozinha no abrigo durante a sensível etapa do puerpério, Miliana estava com os pontos da cesárea, e a pequena ainda tinha o coto umbilical. O filho não queria se alimentar, uma das filhas estava com a família do pai em outro local afetado – e as preocupações maternas se converteram em forte dor de cabeça.
Espero que melhore bastante, mas tenho medo também de vir outra enchente. Não dá para perder a fé. Tem que ter fé e ir lutando.
MILIANA OLIVEIRA
Foram mais de 30 dias fora de casa. Ao voltar, Miliana encontrou tudo aquilo que havia conquistado – inclusive o enxoval da recém-nascida – enlameado e espalhado pelo chão.
— Quando entrei aqui foi horrível. Porque fiquei sem nada. A gente foi arrumando, ganhando as coisas aos poucos. Fomos voltando aos poucos, porque não tinha como ficar também, tinha poucas coisas — relembra, emocionada.
Sem comida, a família chegou a ar fome. Somente graças a outras pessoas conseguiu retomar o lar. Sem essa ajuda, ficariam desamparados. A experiência transformou Miliana como mãe.
— Tu fica pensando: “Ai, eu não queria que eles assem por isso. Eu não queria ter ado por isso.” Ela não entende muito ainda. Mas é uma coisa de eles perguntarem depois: “Cadê as coisas deles?” E tu vai falar o quê? Tu pensa em muita coisa. Eles vão crescer e vão ir perguntando. Ela tem quatro anos e pergunta até hoje: “Mãe, e aqueles meus brinquedos? Mãe, e minhas coisas? Minhas roupas?” — lamenta.
Retomada
A enchente segue cruzando seus pensamentos diariamente. Miliana tem esperança para o futuro, mas encara a realidade com dureza. A manicure relata dificuldades em Eldorado: o serviço já era escasso, e, com muitas pessoas partindo, o movimento diminuiu drasticamente. O cenário está difícil e deve demorar para melhorar, em sua percepção. Para seguir em frente, Miliana busca ter força pelos filhos:
— É só eu. Então, preciso pensar nas crianças. Tudo que vou fazer é neles que tenho que pensar. E se eu não trabalhar? E se eu não for atrás? Eles não vão ter. Eles vão pedir, e eu não vou ter. Então não tem o que fazer.
Aos poucos, a mãe e os filhos estão reconstruindo e retomando a vida, contando fortemente com a ajuda da mãe de Miliana. Embora haja o desejo de mudar de cidade, a família não tem condições, afirma a manicure.
— Espero que melhore bastante, mas tenho medo também de vir outra enchente — pondera. — Não dá para perder a fé. Tem que ter fé e ir lutando.
"Fiz um bom trabalho com aquela pessoa"
Quando a água começou a invadir ruas e casas, foi natural para o núcleo familiar de Letícia Barbosa, 50 anos, ajudar e buscar ser útil. A arquiteta já colaborava com o Instituto Criança Mais Feliz RS e, durante a enchente, reforçou a atuação.
A família do bairro Menino Deus, em Porto Alegre, não chegou a ser atingida diretamente, mas, sem água e luz, permaneceu uma semana na casa de amigos. Por esses motivos, o grupo se dedicava integralmente a ajudar outras pessoas. Letícia auxiliava na triagem e na entrega de doações na ONG. Seu marido providenciava transporte a resgatados na orla do Guaíba.
Me tornar uma pessoa melhor é dar um exemplo para essa pessoa, para que ele, quando se torne adulto, também dê exemplos bons para os filhos dele.
LETÍCIA BARBOSA
O filho Miguel, de 16 anos, que sempre participou das ações do instituto junto aos pais e na escola, também se envolveu. Enquanto as aulas estavam suspensas, o adolescente atuou diariamente no colégio, que se tornou um ponto de recebimento de doações, além de ajudar na recreação de jovens do Pão dos Pobres que lá ficaram abrigados.
No Dia das Mães, Miguel chegou a ar a manhã na escola para fazer companhia às crianças. Para Letícia, ver o filho se envolver tão intensamente foi motivo de orgulho – e, naquele momento, percebeu mais claramente quem o filho está se tornando.
Escolhas
Letícia escolheu ser mãe – e, diariamente, escolhe como conduzir a maternidade. As decisões estão muito relacionadas a olhar para o outro. Para os pais, sempre foi importante explicar o valor das coisas e que Miguel se tornasse uma pessoa generosa. Foi por meio da doação de seus brinquedos, que a família conheceu a ONG.
— O mais emocionante naquele momento triste foi ver que meu filho, já crescido, naturalmente se envolveu em ajudar. Sabe quando a gente para e pensa que fez um bom trabalho com aquela pessoa? Acho que a maternidade que pratiquei até aqui preparou ele para que tivesse inteligência emocional para enfrentar os desafios daquele momento, ser útil e tomar a frente na ajuda. Me emociono, porque ele tem feito escolhas muito felizes na vida — orgulha-se.
Para Miguel, a atuação naquele período foi igualmente importante:
— Quando fui ajudar as crianças, me marcou bastante. Conversava com meus amigos sobre o que a gente estava fazendo, o quão importante era – não só para a gente, mas para as crianças que a gente estava ajudando.
O Dia das Mães é a data mais relevante para quem é mãe, com a celebração desse atributo, na visão de Letícia. Para ela, nada é mais importante do que esse fato:
— É um trabalho, mas é uma coisa que dá significado e propósito. Ser mãe nos dá propósito para acordar todo dia, para ajudar os outros, para trabalhar. Ele é o propósito. Me tornar uma pessoa melhor é dar um exemplo para essa pessoa, para que ele, quando se torne adulto, também dê exemplos bons para os filhos dele, para as pessoas ao seu redor.
A data será mais feliz neste ano, sem o clima tão triste e desesperador que os gaúchos viviam no ano ado, aponta Letícia:
— Seguimos tendo que agradecer o fato de que estamos bem, temos saúde, temos uma casa. E, por isso mesmo, temos quase obrigação de ajudar quem não tem as mesmas condições.