
Também achei divertido o recente lançamento de Tati Bernardi, A Boba da Corte, mas é desonesto resumi-lo apenas a isso.
O livro é um retrato tocante da distinção de classe e abala os leitores que têm um músculo batendo dentro do tórax. A gente se reconhece o tempo todo, seja se colocando no lugar da Tati, seja assumindo os outros lugares da mesa em que ela instala a elite intelectual e social brasileira.
Enquanto eu avançava na leitura, lembrei de uma palavra que, quando criança, escutava com frequência em rodas de adultos. Era um diminutivo cruel usado sem parcimônia. Como se fossem aristocratas de novela, ninguém se inibia de classificar como "gentinha" a pessoa — preferencialmente um jovem — que revelasse indícios de habitar a parte inferior da maldita pirâmide. E esses indícios podiam ser abundantes.
O bairro periférico onde a colega de aula morava. A profissão do pai do namorado: se não é doutor, faz o quê? O forte sotaque de quem chegava do interior. O tom da pele, claro. Andar de ônibus, saltar na parada. Ser sócio de um clube fuleiro. Ter um nome americanizado, de estrela de cinema: a bandeira indiscutível de que a pessoa não era bem-nascida.
O que era ser bem-nascida? Era fazer parte do "nós" e não do "eles". Ser João e não Michael. Mas um João com pedigree. Ser filho de um conhecido da família, ser neto de alguém cujo nome estaria numa placa de bronze em alguma parede de empresa.
Eu me arrepiava a cada vez que ouvia a sentença: Fulana é gentinha. E a análise crítica vinha com a benevolência de quem não tinha o intuito de ofender. Coitada da Fulana, não era culpa dela.
Até o gênio Millôr Fernandes caiu na tentação de escrever que quem gostava de viajar era gentinha, e entendi que ele estava fazendo uma piada (ruim) sobre o turista que não busca conhecimento e imersão, e sim que percorre 10 países em uma semana, como se todos tivessem oportunidade de voltar à Europa várias vezes numa vida, e assim a palavra foi expandindo seus significados e estigmatizando meio mundo: quem dança com os braços pra cima, quem coloca gelo na taça de vinho, quem fala "gratidão" e mais uma lista interminável de pecadilhos.
Até o gênio Millôr Fernandes caiu na tentação de escrever que quem gostava de viajar era gentinha
É só dar um rolê pelas redes sociais e você vai descobrir aquilo que também torna você gentinha — mesmo que, entre "nós", estigmas não colem, entra tudo para a caixa das excentricidades.
O ótimo livro da Tati não usa esta palavra medonha nem uma única vez. Ninguém mais usa, espero. A Odete Roitman versão 2025 talvez a desenterre, e pagará mico, pois está vindo de um ado em que adorávamos odiar os esnobes — hoje, os desprezamos, o que é muito mais letal.
Que os humilhantes diminutivos desapareçam, e viva a Tati, que escreveu um livraço.